REGINALDO GOMES DE ARAÚJO
Especial para a Folha de S.Paulo
É de causar surpresa o resultado da reconstrução do aramaico falado no filme de Mel Gibson, "A Paixão de Cristo". Causa surpresa mesmo --e apesar de-- com toda a violência existente na película.
Além do trabalho de tradução do roteiro em inglês para o aramaico feito por um católico, o padre jesuíta William Fulco, os atores provavelmente tiveram um treinamento excepcional para articular o aramaico sem o sotaque do inglês americano, o que nem sempre é fácil.
A tarefa complica-se porque é uma língua que "supostamente" teria sido falada por Jesus, pois ninguém sabe ao certo como e de que forma Jesus falava o aramaico. Mas, apesar das dificuldades, o trabalho de tradução é realmente bom. Segundo Fulco, baseado numa variedade de literatura em aramaico antigo --como o aramaico bíblico do livro de Daniel e Esdras--, literatura targúmica e séculos de siríaco e hebraico, foi possível realizar a reconstrução do aramaico do tempo de Jesus.
Para quem está familiarizado com aramaico e seus diversos dialetos, a pronúncia utilizada no filme aproxima-se muito da ocidental ou palestinense. É um tipo de aramaico que remete ao aramaico bíblico dos livros de Daniel e Esdras e ao aramaico targúmico. Característica desse grupo ocidental é a preferência pelo som vocálico --"a"-- que pode ser ouvido durante todo o filme, e não o som de "o" que é típico das regiões mais orientais.
Outra característica é o uso dos sufixos pronominais --fenômeno típico das línguas semíticas quando usam o que chamamos de pronomes pessoais do caso oblíquo-- que se escutam nesses diálogos (por exemplo, o "khon" que escutamos muitas vezes na fala de Jesus referindo-se ao pronome de segundo pessoa plural). Enfim, ouve-se uma reconstrução gramatical do aramaico perfeita, excluindo-se alguns problemas fonéticos e hebraísmos.
Podemos constatar ainda alguns problemas que soam estranhos para o ouvido:
1º) A pronúncia do sufixo pronominal da segunda pessoa masculina (te, ti, teu, tua) soa estranha, pois se esperaria um som "ax", como o de "x" no alemão "nacht", mas ouve-se sempre "ak". Tal dificuldade está no sistema fonético dos próprios autores, que não possui o fonema "x". Esse tipo de som se encontra em todas as línguas semíticas (árabe, hebraico siríaco, etiópico etc);
2º) Poderia ter sido evitada a influência de um certo hebraísmo, pois o uso de palavras como "adonai", "adoni" (meu senhor, senhor) não são encontradas no aramaico da época. O correspondente seria "mar", "mari".
Apesar desses e de outros pequenos problemas, os autores mostraram um trabalho de valor na reprodução do aramaico.
O que é
A língua aramaica, juntamente com o acádico árabe e fenício, constitui a família de língua semítica dos habitantes das tribos nômades do deserto da Síria.
O aramaico surgiu na região do deserto da Síria. Chegou a ser língua franca --como é hoje o inglês-- e passou a ser usada na Palestina como língua principal. Segundo a tradição judaica, o aramaico foi falado por Adão (Sanhedrin 38b) e foi, provavelmente, a língua materna de Jesus e de numerosos rabinos do Talmude e Midrash.
Por ter sido uma língua dominante no mundo judaico, muitos textos importantes foram escritos
Origem
A palavra aramaico vem do termo "aram", nome do quinto filho de Sem, o primogênito de Noé (Gn 10,21). Foi também usado como nome de um lugar 4.000 anos atrás. O livro do Gênesis menciona lugares chamados de Paddam-Aram e Aram-Naharaim. Todavia, não há referências diretas ao povo aramaico (arameu) até o século 11, quando o soberano assírio Tiglat Falasar 1º (1115-1103) deparou-se com eles na sua expedição militar ao longo do Eufrates. Esse povo era considerado, aparentemente, pequeno; formava reinos independentes, primeiro na Síria, e expandiu-se até o Golfo Pérsico.
O aramaico falado por Jesus já não existe mais como tal, mas uma moderna versão é ainda falada por pequenos grupos no Oriente Médio, o que denominamos de aramaico moderno. É falado hoje em diversas cidades próximas de Damasco (Síria), a maior sendo Ma'lula, e também por alguns cristãos no sudeste da Turquia, presentes em Tur'Abdin, além de alguns de milhares de imigrantes que vivem nos EUA e na Europa.
Reginaldo Gomes de Araújo é professor doutor de aramaico do Departamento de Letras Orientais da FFLCH-USP.
FSP on-line, em 19/03/2004.
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